Maria Alice Estrella
Emprestada
Por Maria Alice Estrella
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Ontem procurei por todos os lugares possíveis e imagináveis por um livro, que muito aprecio, tal como aquele que se tem na cabeceira da cama, silenciosa e especialmente colocado. Guardião de pensamentos que partilho com o autor e que me acompanha fiel pelo cotidiano desde tempos atrás.
Desconheço seu paradeiro. Tentei, de todas as maneiras, lembrar se o emprestei e para quem o fiz. Inutilmente. Nem um só resquício de memória veio à tona. O livro desapareceu.
Com essa minha mania de fazer associação de ideias, projetei a situação para a vida, para as ocasiões em que emprestamos nossa existência para os outros.
Comecei a fazer uma avaliação gradativa e quantitativa das vezes em que deixei de viver a minha essência para viver a realidade dos outros. Constatei meus naufrágios em mares alheios. Assustada, percebi o quanto me deixei de lado, o tanto que transferi de mim mesma por vestir peles que não me pertenciam. Emprestei-me. Simplesmente, como quem sonha o sonho que não é o seu próprio.
Perambulei como o livro que sumiu por empréstimo ao desconhecido.
Por falta ou excesso de coragem fui me emprestando. Prestando-me para ouvir, para consolar, para falar, chorar, ajudar, esperar, compreender. É um sem fim de me emprestar constante e desmedido, que o espaço em que sou inteira, sem divisões ou extensões, é raro e muito escasso.
O privilégio, claro que não é só meu. Muitos se emprestam para ouvir desabafos por horas a fio e se emprestam para atender as solicitações que lhes fazem.
E pergunto: - Sabes tu o quanto te emprestaste? Quantos momentos transbordaram de ti nos devaneios de outros?
Refeita do susto, me reencontro com passagens em que pedi emprestada a vida de muitos e reconheço que tudo não passa de uma via de mão dupla.
Na verdade, tudo é questão de empréstimo. O sorriso, o afago, o consolo, a palavra, o silêncio. Troca de peles, de rótulos, de respiração.
Empresto o que em mim transborda e peço emprestado o que me falta.
Conjugo verbos, uno sílabas, componho um verso livre como o vento que desrespeita limites. Invado teu mundo e nele ergo bandeiras tremulantes que desassossegam tua quietude, teus receios, tuas dúvidas e certezas.
Nos meus trejeitos de empréstimo faço algazarras na tua alma e desacomodo tua aparente apatia.
Por quê? Pelo mero fato de que escrevo o que, muitas vezes, pensas e escancaro a tua alma na frente do teu espelho.
Então, constatas que também te emprestas e que pedes emprestadas vivências alheias.
Ao final das contas, somos interessantes e inesgotáveis livros lidos e relidos. Emprestados ou não.
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